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“Como eu matei a minha filha”: confira entrevista

O historiador e fotógrafo Cadu de Castro levou um susto ao abrir seu Facebook no dia 8 de agosto: o post que havia publicado horas antes tinha viralizado e sido comentado e compartilhado por dezenas de milhares de pessoas, tanto no Brasil quanto internacionalmente.
 
A crônica, com o título contundente “Como eu matei a minha filha”, trata da responsabilidade dos homens em uma cultura de violência contra as mulheres, e da necessidade de que eles rompam com modelos de masculinidades que reproduzem essa violência. “Muita gente se enxergou no texto, muita gente mesmo, homens e mulheres. Acho que foi isso que ajudou a repercutir”, conta Cadu. 
 
A repercussão segue gerando frutos: a crônica foi traduzida para o inglês por ativistas feministas de Portugal, Cadu vem alimentando a  página “Homens contra o Patriarcado e o Machismo” e está produzindo uma série de vídeos sobre o tema, além de outros projetos. 
 
“Entendo que, cada vez mais, homens vêm compreendendo o que são os feminismos, bem como a opressão e a violência geradas pelo patriarcado e pelo machismo, e estão se engajando na luta contra as opressões. Espero que nossas ações, sempre com o objetivo de educar para a diversidade e solidariedade, surtam cada vez mais efeito”, diz o historiador.
 
O Fundo ELAS conversou com Cadu de Castro sobre seu post viral e os projetos que têm surgido a partir disso, e também sobre o engajamento de homens no enfrentamento à violência contra as mulheres. Confira a entrevista:
 
O que te motivou a escrever a crônica “Como eu matei a minha filha” e publicá-la no Facebook?
 
Há alguns anos que tenho dedicado parte dos meus estudos a questões de gênero, e a reflexões sobre os males que o patriarcado e o machismo provocam em nossas relações sociais. Estudei com uma das maiores especialistas em feminismos do país, a antropóloga Carla Cristina Garcia, da PUC São Paulo e do Instituto Innana. Isto posto, entendo que devamos combater todo e qualquer tipo de hierarquização na sociedade, e o patriarcado e o machismo são as mais ancestrais das hierarquizações. Talvez uma das primeiras formas de opressão que conhecemos.
 
Portanto, o tema já me incomoda há muito tempo e os dados sobre feminicídio não são novidade para mim, e foram esses números assustadores que me estimularam a escrever a crônica e publicar no Facebook, sem nenhuma expectativa ou pretensão de viralização. Gosto de construir textos que incomodem (no sentido de tirar da zona de conforto), que estimulem reflexões e permitam o exercício da alteridade.
 
Em quase um mês, o post contava com 65 mil reações, 555 comentários e 57 mil compartilhamentos. Imagino que você não esperava essa repercussão – como foi lidar com ela?
 
Não, não imaginava. Foi uma surpresa enorme. São mais de 57 mil compartilhamentos na minha página, 149 mil compartilhamentos na página de Ronaldo Junior, que compartilhou a crônica pois disse que se enxergou no texto em diversos momentos, alguns milhares na página da cantora Júlia Rocha, outros milhares na página de Manuela D’Ávila, os sites como o Brasil 247, o Justiça de Saias (da promotora especialista em direito da mulher, Gabriela Manssur), entre outros. Além disso se popularizou na Argentina, Uruguai, Angola, Moçambique e Portugal.
 
Bem, tem me dado um pouco de trabalho. Muitos convites para o Facebook e sou cuidadoso ao aceitá-los, pois há muitos perfis fakes - especialmente em ano eleitoral. Verifico perfil por perfil. Além disso, muita gente me procura no inbox. Conheci diversas histórias de violência física e psicológica - de pessoas que procuram alguém para “ouvi-las” -, e até um rapaz que admitiu muito dos comportamentos descritos e a crônica o fez “cair na real”. Surgiram convites para escrever para páginas e sites - que sou muito cuidadoso em aceitar, pois corro o risco de não dar conta -, e para transformar alguns de meus textos em um espetáculo de teatro. O convite foi feito pelo ator André Falcão, e esse aceitei de pronto.
 
O que importa é que o texto cumpra com sua função educativa: estimular reflexões sobre o machismo e a violência contra a mulher. Que contribua para libertar as mulheres e os homens das garras de uma masculinidade construída de maneira tóxica, inadequada, desumana.
 
Você também está gerenciando a página “Homens contra o Patriarcado e o Machismo”, que em duas semanas já alcançou mais de 1.700 seguidores. Qual é o objetivo da página? 
 
A página “Homens contra o patriarcado e o machismo” foi criada pela ativista feminista portuguesa, Mar Velez, que me convidou a participar. Aceitei imediatamente e chamei alguns amigos, homens, com os quais converso e debato as questões relacionadas ao patriarcado e ao machismo. Costumo dizer que temos de (des)aprender o que somos, pois somos forjados machistas, racistas, homofóbicos, etc., portanto, educar-se é desaprender.
 
A página está tendo uma boa repercussão e com participação efetiva nos comentários de homens e mulheres de Angola, Moçambique, Portugal e Brasil. A proposta de Mar Velez é integrar os homens nos debates contra a opressão machista. Acho um caminho importantíssimo a seguirmos. É preciso que nos engajemos na luta pelos feminismos. Os feminismos reivindicam igualdade de direitos e oportunidades, enquanto o machismo são as mentalidades e discursos que sustentam e consolidam a desigualdade, a opressão e a violência do patriarcado. Ora, essa luta é nossa.
 
Entendo que, cada vez mais, homens vêm compreendendo o que são os feminismos, bem como a opressão e a violência geradas pelo patriarcado e pelo machismo, e estão se engajando na luta contra as opressões. Ora, todo homem é filho de uma mãe, muitos têm irmãs, esposa, filhas, sobrinhas, amigas, que sofrem diretamente com a estrutura patriarcal da sociedade e o machismo que a suporta, portanto, é uma questão de solidariedade, de busca por justiça social, de dignidade, alinhar-se e aliar-se às lutas feministas. Mas sempre respeitando o protagonismo e o lugar de fala das mulheres. Espero que nossas ações, sempre com o objetivo de educar para a diversidade e solidariedade, surtam cada vez mais efeito.
 
Você também está gravando uma série sobre machismo, feminicídio, racismo e temas afins no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo.  Poderia contar sobre a série, onde e quando vai ao ar, como está sendo realizada?
 
Esta semana gravamos três programas de 20 minutos, produção do jornalista e documentarista Júnior Castro, que iremos publicar em breve num novo canal de youtube que está sendo criado, o (Des)aprendendo, onde trataremos de temas como o patriarcado, o machismo, o racismo, e outras questões de ordem política e social. As gravações aconteceram num espaço emprestado pelo Centro de Formação e Pesquisa do Sesc São Paulo.
 
Os três primeiros programas tratam da crônica como um fenômeno nas redes sociais, a masculinidade tóxica e a feminização da pobreza, que precisa ser desvelada e combatida. Ainda não temos o dia do lançamento desses programas no canal, pois dependemos do trabalho de edição do Júnior Castro, que tem outros compromissos também.
 
Há outros projetos se desdobrando a partir do post? A que você credita toda essa repercussão?
 
Bem, o texto para teatro, em parceria com o ator André Falcão, a página Homens contra o patriarcado e o machismo, concebida por Mar Velez, o canal (Des)aprendendo, que já existia na ideia, mas que se consolidou por essa onda gerada pela crônica, são alguns deles.
 
Fora isso, estou iniciando um projeto em que trabalharei os signos e lugares de poder do patriarcado na cidade de São Paulo. A ideia é revelar como o patriarcado e o machismo estão presentes e enraizados em todos os espaços, inclusive nos lugares urbanos, e como os signos continuem para consolidar as mentalidades machistas. Esta ideia é anterior a crônica, mas sua repercussão a acelerou. Em breve, lançaremos um passeio a pé pelo centro de São Paulo, abordando esta temática. Convido a todos a participarem desde já. Ainda não há data certa, mas acredito que até novembro esteja finalizado. Podem acompanhar pela minha página no Facebook.
 
Em princípio, achei que a crônica havia viralizado por causa da repercussão do caso da advogada Tatiane Spitzner. O caso gerou grande comoção. Mas quando se espalhou na Argentina, em Portugal, passei a refletir em outra direções. Acredito que o título desperta a atenção do leitor e a forma como construí a argumentação é muito verossímil. Muita gente se enxergou no texto, muita gente mesmo, homens e mulheres. Acho que foi isso que ajudou a repercutir. O que surpreende é que é um texto “grande" para os padrões das redes sociais, o que o pessoal chama de “textão" e sobre um tema sério.
 
Qual é, para você, a importância de que os homens se envolvam e posicionem em relação à luta pelo fim da violência contra as mulheres?
 
É absolutamente fundamental que TODOS os homens se envolvam e se posicionem no sentido de combater a violência contra a mulher. No entanto, para isso será necessário um exercício difícil e doloroso que é reconhecer em si o machismo que nos estrutura. A primeira luta contra o machismo deve ser travada dentro de cada um de nós. O machismo é tão enraizado que se naturaliza. Precisamos refletir sobre isso. Nenhuma opressão pode ser naturalizada. Portanto, temos que repensar nossa masculinidade. A masculinidade que nos foi ensinada é frágil, tóxica e é vetor de violência. Precisamos desaprendê-la.
 
Precisamos compreender as lutas dos feminismos, como luta por igualdade, respeitá-las e nos alinharmos e aliarmos a elas. Estamos em pleno século XXI, não é mais possível aceitarmos mentalidades e posturas com permanências medievais. Construamos um novo homem. Ensinemos aos nossos filhos uma nova masculinidade, que não se coloque acima e oprima a feminilidade. Salvemos as nossas filhas e filhos desta hierarquização social doentia.
Mas não esqueçamos, toda essa luta começa dentro de nós.
 
Acesse aqui o post original
 
Acompanhe a página Homens contra o Patriarcado e o Machismo.